domingo, 23 de dezembro de 2012

E a eternidade é tudo o que me resta


 
A crepitação

Qualquer vida é naufrágio e perdimento.
Quando chegamos ao fim da restinga
encontramos apenas mar e vento.
Onde estão nossos sonhos? Um errante
raio de sol sumiu entre a folhagem,
dentro de nós o dia fez-se pálido.
Cercado pela luz da madrugada
e de mim rodeado, estou sozinho
entre as grutas da terra e a ira do mar.
Última luz da derradeira festa,
crepita na manhã a eternidade.
E a eternidade é tudo o que me resta.

 Lêdo Ivo

Antonio Vivaldi - "Summer" from four seasons


sábado, 3 de novembro de 2012

No ínfimo a exuberância



Ave Tuiuiu

"As coisas que não têm dimensões são muito importantes.
Assim, o pássaro tu-you-you é mais importante por seus pronomes
do que por seu tamanho de crescer.
É no ínfimo que eu vejo a exuberância."
Manoel de Barros
Em Livro sobre o nada


Manoel de Barros, esse incrível Alquimista do Verbo, possui um afinado talento de engrandecer as palavras, de dar a elas uma dimensão muito maior do que elas realmente têm.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Quando estou triste


Quando estou triste, se estou muito triste,
ramagens me aparecem nas espáduas,
na pele se acumula uma cortiça
e vigas de madeira são meus braços.
Dos meus cabelos pendem folhas mortas
sem esperança verde em novos brotos
nem consolos de azul sobre uma copa
que o coração desenha nos espaços.

Quando estou triste, se estou muito triste,
nascem da concha agreste destas mãos
as amêndoas amargas do silêncio
e uma seiva de fel corre em meus talos.

Expostos aos rigores da intempérie
dentro e fora de mim tremem os pássaros
que aninham nas ramagens do meu lenho
de sulcos boquiabertos, assombrados,
por ver como o pesar me torna espessa.

Quando estou triste me transformo em árvore.
Tania Corrêa Alegria

sábado, 20 de outubro de 2012


Arte: Sandro Botticelli


Alguém amou e, amando, encontrou-se.
Quantos não há, porém, que amam para se perderem.
Que seria da razão e do bom senso,
se não houvesse a loucura?
Que seria do prazer dos sentidos,
se por trás dele não estivesse a morte?
Que seria do amor
sem o eterno e mortal antagonismo dos sexos?
Amor não deve pedir,
nem tampouco exigir.
Ele haverá de ter a força
de chegar por si mesmo à certeza
e ao invés de atrair,
passa a ser atraído.
Hermann Hesse

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A esperança do semeador


Arte: Renê Magritte


"No olhar curioso do aprendiz,
o potencial da semente.
Na habilidade do mestre que ensina,
a esperança do semeador."

Edival Perrini

(em Poemas do Amor Presente)


Em homenagem aos semeadores que tenho encontrado ao longo do caminho e, em especial ao querido  Edival Perrini (em suas próprias palavras) pelas sementes lançadas na grande arte da Psicanálise.




domingo, 14 de outubro de 2012

Outro falar

Arte: Salvador Dali

Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.

Vimos as Plêiades. Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta vida. Longo mar.

Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...

Nem tormenta, nem tormento
nos poderia parar.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.

Cecília Meireles
Rei do Mar
Do livro Flor de poemas

domingo, 7 de outubro de 2012

Situação limite


Natalie Portman - Filme Cisne Negro

                                                       Autotomia

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.
Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.
No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.
Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.
Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.
Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.
Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.
Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.

Wislawa Szymborska
em Inimigo Rumor

domingo, 30 de setembro de 2012

Refutação do tempo.



"O tempo é a substância de que sou feito.
O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio;
é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre;
é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo"

Jorge Luís Borges em  "Nova Refutação do Tempo"

domingo, 16 de setembro de 2012

Não consigo entender


 
Não consigo entender
O tempo
A morte
Teu olhar

O tempo é muito comprido
A morte não tem sentido
Teu olhar me põe perdido

Não consigo medir
O tempo
A morte
Teu olhar

O tempo, quando é que cessa?
A morte, quando começa?
Teu olhar, quando se expressa?

Muito medo tenho
Do tempo
Da morte
De teu olhar

O tempo levanta o muro.
A morte será o escuro?
Em teu olhar me procuro.
 
Paulo Mendes Campos

sábado, 15 de setembro de 2012

Vibrações do tempo


"A gaivota determinada mergulha na água
Verde. Há um tempo para o peixe
E um tempo para o pássaro
E dentro e fora do homem
Um tempo eterno de solidão.

Muitas vezes, fixando o meu olhar no morto,
Vi espaços claros, bosques, igapós,
O sumidouro de um tempo subterrâneo
(Patético, mesmo às almas menos presentes)
Vi, como se vê de um avião,
Cidades conjugadas pelo sopro do homem,
A estrada amarela, o rio barrento e torturado,
Tudo tempos de homem, vibrações de tempo,
vertigens.

Senti o hálito do tempo doando melancolia
Aos que envelhecem no escuro das boîtes,
Vi máscaras tendidas para o copo e para o tempo.
Com uma tensão de nervos feridos
E corações espedaçados.
Se acordamos, e ainda não é madrugada,
Sentimos o invisível fender do silêncio,
Um tempo que se ergue ríspido na escuridão.
Cascos leves de cavalos cruzam a aurora.
O tempo goteja
Como o sangue.
Os cães discursam nos quintais, e o vento,
Grande cão infeliz,
Investe contra a sombra.
O tempo é audível; também se pode ouvir a
eternidade."

Paulo Mendes Campos

sábado, 8 de setembro de 2012

Reinventar-se

Arte: Margarida Cepeda
Se soubesses como me reinvento
"Nestes lamentos
Que me consomem
Com o passar do tempo

Chora-me a alma
De não saber como ser
Neste mundo alucinado
Onde me deito
E ajeito

Gostava de saber voar
E levar-te a ver as estrelas
Talvez o seu brilho
Te banhasse
E te ajeitasses no meio delas

Só elas entendem este meu jeito
De não ser o ideal perfeito
Para entender
Os rostos alienados
Que afluem neste paraíso
Onde todos de loucos
Temos um pouco

Deixem-me ser também
Um pouco de gente
Neste mundo
Que é mundo perdido
Por nem saber
Como ser louco."
Maria Dolores Marques

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Nascer é assim?


Arte: Nicoletta Tomas Caravia
"...Agora é de novo madrugada.
Mas ao amanhecer eu penso que nós somos os contemporâneos do dia seguinte.
Que o Deus me ajude: estou perdida.
Preciso terrivelmente de você.
Nós temos que ser dois para que o trigo fique alto.
Estou tão grave que vou parar _
Nasci há alguns instantes e estou ofuscada
Os cristais tilintam e faíscam
O trigo está maduro: o pão é repartido
Mas repartido com doçura? É importante saber
Não penso, assim como o diamante não pensa
Brilho toda límpida
Não tenho fome nem sede: sou
Tenho dois olhos que estão abertos
Para o nada
Para o teto
Vou fazer um adágio
Leia devagar e com paz
É um largo afresco.
Nascer é assim:
Os girassóis lentamente viram suas corolas para o sol
O trigo está maduro
O pão é com doçura que se come
Meu impulso se liga ao das raízes das árvores..."

(Clarice Lispector)

domingo, 29 de julho de 2012

Quanto mais penso...


O MÍNIMO DO MÁXIMO
Tempo lento,
espaço rápido,
quanto mais penso,
menos capto.
Se não pego isso
que me passa no íntimo,
importa muito?
Rapto o ritmo.
Espaçotempo ávido,
lento espaçodentro,
quando me aproximo,
simplesmente medesfaço,
apenas o mínimo
em matéria de máximo
(Leminski)

terça-feira, 17 de julho de 2012

Ramos separados...



Balada do Amor que não Veio

Se acaso penso em ti, me
inquieta o pensamento...
Por que havias de vir
assim tarde demais?
Bem que eu tinha
de há muito
um cruel pressentimento,
- e há sempre um desespero em nós,
se num momento
desejamos voltar a vida para trás...
Neste instante imagino o que teria sido
o meu vago destino desorientado,
se antes, eu já te houvesse um dia conhecido,
esse tempo, meu Deus!...
- e esse tempo perdido
pudesse ao teu convívio ter aproveitado!

Não há nada entre nós, nada...
e em verdade há a vida
que nos chama e nos prende!...
E já agora imagino
que aqui estás ao meu lado
a ouvir-me comovida
e me entregas a mão, --
e entrego-te vencida
a minha alma,

- e com ela todo o meu destino!

Não há nada entre nós,
- mas se nos encontramos
ouvirás de hoje em diante
um poema onde tu fores,
- trouxemos o destino estranho
de dois ramos, separados,
- que importa?
ainda assim nos juntamos
confundindo as ramagens,
misturando as flores...
E eu nem te vi direito!
JG de Araújo Jorge

O que vejo



"De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo..."

Adélia Prado

domingo, 8 de julho de 2012

Presença



“É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.”
Mário Quintana

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Invento

    
                     

Ney Matogrosso 
Invento

"Vento
Quem vem das esquinas
E ruas vazias
De um céu interior
Alma
De flores quebradas
Cortinas rasgadas
Papéis sem valor
Vento
Que varre os segundos
Prum canto do mundo
Que fundo nao tem
Leva
Um beijo perdido
Um verso bandido
Um sonho refém
Que eu não possa ler, nem desejar
Que eu não possa imaginar
Oh, vento que vem
Pode passar
Inventa fora de mim
Outro lugar
Vento
Que dança nas praças
Que quebra as vidraças
Do interior
Alma
Que arrasta correntes
Que força as batentes
Que zomba da dor
Vento
Que joga na mala
Os móveis da sala
E a sala também
Leva
Um beijo bandido
Um verso perdido
Um sonho refém
Que eu não possa ler, nem desejar
Que eu não possa imaginar
Oh, vento que vem
Pode passar
Inventa fora de mim
Outro lugar"
Vitor Ramil